"O samba de São Paulo não deve nada para o samba de outras regiões", afirma pesquisador
T. Kaçula constrói acervo sobre a história sobre o ritmo paulista depois de 18 anos de estudos
Sambista, sociólogo e pesquisador. Tadeu Kaçula mora em São Paulo, é coordenador do Instituto Samba Autêntico, idealizador e produtor do projeto Memórias do Samba Paulista e autor do livro "Caso Verde - Uma pequena África na Zona Norte de São Paulo". O samba está nas pesquisas, na veia, nas mãos e nos pés dele: T. Kaçula já foi presidente da Escola de Samba Camisa Verde e Branco e é musico - vez o outra toca seu cavaquinho. Ele esteve em Bauru numa rápida visita, onde conversamos sobre samba, questões raciais e a relação do negro com a academia.
Geni Guimarães, Tadeu Kaçula, Juarez Xavier e Roque Ferreira durante a mesa de debate no 1º Encontro de Cultura Negra de Bauru (SP), realizado em 20 de maio de 2017. (Foto: Ana Carolina Moraes)
ANA CAROLINA: O samba é um espaço de resistência? Ele tem outras formas de expressão além da música? Como o Hip Hop, que faz denúncias por meio dos cinco elementos...
TADEU KAÇULA: Acredito que sim, o samba tem outras formas. O Hip Hop cumpre hoje muito bem o papel que o samba cumpria na década de 1920, 1930, 1940. Até posso dizer na década de 1980. Na década de 1990 [o samba] se modernizou um pouco, usou outras linguagens, criou novos espaços de resistência. Então, a resistência no samba acontece primeiro pelo viés da música, que traz a denúncia. Mas também tem outros elementos, como, por exemplo, a escola de samba, a quadra da escola, o samba enredo. Esse conjunto de pessoas aglutinadas nesses espaços também é uma forma de resistência. Quando você percebe, por exemplo, que uma escola de samba vai tratar de algum tema relacionado a cultura negra, no carnaval - é resistência. O samba faz todo um percurso por todos os espaços sociais existentes no Brasil, por isso é um lugar de resistência.
AC: Quais foram os principais desafios da tua pesquisa?
TK: De uma forma um pouco mais recortada para o Estado de São Paulo, foi encontrar, dentro do acervo que temos hoje, as informações que precisava. Para você ter uma ideia, o Instituto Samba Autêntico existe há 18 anos, então foram 18 anos de pesquisa para levantar este acervo. Hoje a gente pode dizer que tem quase tudo sobre o samba de São Paulo. A maior dificuldade foi achar lugares que a gente pudesse garimpar esse material. Até porque a Indústria Cultural nunca teve interesse em produzir e colocar no mercado a música direcionada para o samba rural, mais interiorano, sobretudo desses personagens que participaram do processo. Então, para você levantar esse material, para descobrir quem era Paulistinha, quem era Vassourinha, para descobrir quem era Henricão... São pessoas, personagens que ajudaram na formação da história do samba, mas que tinham pouco registro gravado ou fotografado ou impresso. O garimpo foi difícil, mas hoje a gente pode dizer que tem um acervo até que legal.
No trecho a seguir, T. Kaçula comenta sobre percepções acerca da figura do negro pesquisador:
AC: Como é que você foi resgatando essa memória e construindo o acervo?
TK: Muito disso foi pela oralidade, porque tive que ir na casa dos grandes mestres do samba, do Seo Carlão do Peruche, do Seo Toninho Batuqueiro, Seo Xangô da Vila Maria, do Seo Nenê da Vila Matilde, Zelão, enfim, todos esses sambistas que ajudaram a construção da história do samba, mas que não tinham gravado, não tinham nada registrado. Eu também tive a grata honra de produzir uma coleção de discos em São Paulo que foi, que é o projeto Memória do Samba Paulista. Produzi 12 CDs com as velhas guardas de São Saulo, Vai-Vai, da Peruche, da Nenê, da Rosas de Ouro, da Vila Maria, alguns sambistas como Devalsa, Velão, Tio Mário, Borba, Toniquinho Batuqueiro, Tias Bahianas Paulistas, enfim. Chegou um momento que eu já não estava encontrando mais informações, os sambas só estava na memória deles. Por isso nós fomos lá, levantamos todos esses sambas inéditos e gravamos. E no final de cada CD tem ainda uns cinco, seis minutos de depoimentos deles, contando um pouco da história, como eles começaram, etc. É um registro bem interessante.
AC: Quais são os principais resultados que você alcançou com a pesquisa?
TK: O maior trunfo foi entender que o samba de São Paulo não deve absolutamente nada para o samba que se manifesta em outras regiões do país. Diferente do samba que se manifesta no Rio de Janeiro, onde houve todo um suporte do governo de Getúlio Vargas, que estabelece, quando vai criar elementos de identidade nacional, o samba carioca como música brasileira e também com a força da Rádio Nacional, o samba de São Paulo não teve respaldo. Mas a produção era tão importante, tão representativa quanto, né.
AC: Você falou um pouco do Getúlio Vargas, dessa espécie de política de Estado para valorização do samba como identidade nacional e que aconteceu somente no Rio de Janeiro porque era a capital da época. Isso trouxe algum prejuízo para os sambas do Brasil?
TK: Eu não digo que tenha trazido um prejuízo. De certa forma, ele acabou inutilizando um pouco a importância do samba com o seu sotaque, com a sua peculiaridade, na região a qual ele se desenvolve. Eu acho que ele reprimiu esse samba. Mas quando Getúlio estabelece o samba carioca como música nacional há a popularização do ritmo, que se torna protagonista, em termos de gêneros musicais. Então são dois pesos aí: um invisibiliza o samba que se manifesta em outros lugares e outro populariza o ritmo em outros espaços, trazendo autonomia, no sentido de também se fortalecer ali e se colocar como esse elemento de identidade.
AC: Agora uma curiosidade mesmo: quando samba se popularizou nessa época, ele já estava embranquecido?
TK: O midiático, sim.
AC: Então já começa aí o apagamento da figura do negro sambista?
TK: Você tem Chico Alves, Ciro Monteiro, você tem os grandes cantores de samba da época que compravam o samba dos compositores do morro. O cara fazia um sucesso tremendo na rádio com um samba que ele assinava, mas que, na verdade, não tinha sido ele que tinha composto, mas sim os sambistas do morro, como Cartola, Nelson Cavaquinho, Wilson Batista, Ismael Silva - estou falando dos sambistas do Rio de Janeiro.
Aqui em São Paulo, o processo de branqueamento mais expressivo do samba vai do final da década de 1960 até o início da década de 1970, quando o poder público começar a financiar o carnaval. E aí você começa a ver uma expropriação do negro e uma apropriação do branco. Porque você tem ali um processo de desenvolvimento econômico muito forte sendo estabelecido. Então, onde tem capital, tem interesse do capitalista, é óbvio. Nesse processo, o samba de São Paulo passar por uma apropriação indébita, se assim posso dizer. E a população negra, que era protagonista, se transforma em antagonista.
Hoje, se você for pensar, em São Paulo, das 14 escolas de samba do grupo especial, só tem dois presidentes são negros. Dois. Isso porque, no passado, o desenvolvimento do carnaval, das escolas de samba de São Paulo era visto com um olhar 100% racista, 100% elitista, e que colocava a escola de samba e o carnaval como lugar de negro, desocupado, vagabundo. Hoje é um status você ser de escola de samba, não pelo fato de você sair de um lugar social de pouco prestígio; você passa a ser líder de uma comunidade de cinco, seis mil pessoas e que vai protagonizar no evento que é visto no mundo inteiro, mais do que isso, quando você assume a presidência de uma escola de samba do grupo especial, você tem o acesso a uma mobilização econômica que você não teria se você estivesse naquele seu lugar social. Uma escola do grupo especial hoje movimenta por ano cerca de três, quatro milhões de reais.
Se você for pegar as escolas de samba do Rio de Janeiro, nenhum presidente é negro. O carnaval de São Paulo, não é o negro que administra o orçamento; o carnaval da Bahia, que é um dos maiores carnavais do nordeste, não é o negro - na Bahia - não é o negro que está detendo todo o processo de desenvolvimento econômico; no carnaval carioca, não é o negro que está desenvolvendo o processo econômico. Mas quem criou, quem fomentou, quem arquitetou, quem estruturou todo esse processo foi o negro.
AC: O espaço de 30 anos, vamos dizer assim, entre o embranquecimento do samba no Rio de Janeiro e em São Paulo, teve alguma influência na preservação da memória dos sambista daqui? Por exemplo, o pessoal lembra mais dos sambistas negros, ou ele foi tão perverso quanto?
TK: Foi tão perverso quanto. Quando você deixa de ter um negro de raiz da escola a frente de uma Agremiação, você rompe com a relação cultural, étnica, com os fundamentos com os quais essa escola foi criada.
Exemplo do rompimento da tradição da escola de samba quando ela não é gerida por uma pessoa negra:
O pesquisador comenta sobre as consequências do rompimento e a perda da tradição:
Kaçula fala sobre o samba como espaço de preservação das tradições afro-brasileiras e de resistência:
Comentário sobre a distorção das tradições do samba:
AC: Você acredita que tem tido uma mudança ou uma preocupação na forma com a figura do negro será representada na mídia?
TK: Eu acho uma grande hipocrisia porque, na verdade, você coloca pelo politicamente correto uma coisa que você, de certa forma, não se relaciona de uma forma igualitária, respeitosa, de forma a qual você entende a importância da inclusão. Nós vivemos numa sociedade hipócrita. A sociedade em que os meios de comunicação, e aí, para além de da discussão sobre os meios de comunicação, é quem detêm os meios de comunicação. Não somos nós. Não é um negro que tá lutando. Nos tivemos, na década de 1930, um pontapé inicial com a Imprensa Negra, com a Frente Negra Brasileira, que tinha os jornais e uma expressão fortíssima, mas que, em 1937, Getúlio Vargas vem com o Estado Novo e "vop", e rompe. Porque não fosse isso, hoje a população negra estaria mais articulada em termo de desenvolvimento de conteúdo, de ideias, de formação de opinião. Naquela época, a Frente Negra Brasileira estava interferindo muito no país, tinha virado partido político, tinha uma imprensa forte. Mas na contemporaneidade, nós não detemos mais nenhum meio de comunicação de massa, seja escrito, televisivo, radiofônico.
A imprensa no Brasil tem uma especificidade, tem um papel político, econômico, racial. A imprensa no brasil joga para a oligarquia, joga para a elite burguesa branca. Ponto. É essa que as pessoas chamam de imprensa oficial e que eu chamo de oficiosa.
O que eu percebo é que quando você tem algum negro ou alguma negra a frente de qualquer veículo de comunicação de expressão, ela vai conseguir fazer um trabalho até um determinado ponto. Quando ela começa a ter uma expansão, um lugar um pouco mais acessível, de formação de opinião para discutir mesmo pautas, ai nesse caso eu não tenho a linguagem jornalística, mas discutir pautas que possa interferir no pensamento social brasileiro, ela é totalmente excluída do processo.
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